sábado, 12 de outubro de 2013

os dias das crianças

 ouço muito: "você não coloca limites nessa menina, ela ainda vai te dar muito trabalho!"
pois é isso mesmo que eu quero: que ela me faça trabalhar o corpo e a mente, trabalhar minhas mais fervorosas convicções, meus medos mais escondidos, meus preconceitos mais arraigados, todas as minhas certezas absolutas.
  quero que a minha filha tenha a liberdade de se expressar como preferir - por meio do choro, do riso, da raiva, do carinho, da arte. e que ela saiba que, qualquer que seja sua expressão, será sempre respeitada.
  quero que ela se sinta segura o suficiente pra me dizer "não!", pra se opor ao que eu penso, pra discutir idéias de igual pra igual, pra bater de frente defendendo o que acredita.
  quero que ela tenha autonomia sobre o próprio corpo, que decida sozinha como, quando e com quem se relacionar, sem medo de represálias. que ela se ame em suas particularidades, aceite as diferenças que seu corpo carrega, veja a beleza de cada uma delas.
  quero que ela saiba que ninguém pode tocá-la sem seu consentimento. que ela denuncie e se defenda de todo o tipo de violência, que não aceite de forma alguma que lhe firam física, sentimental ou intelectualmente.
  quero que ela tenha pelas pessoas o mesmo respeito que terá por si mesma. que não ultrapasse o limite do outro, que não se sinta no direito de usar ou magoar qualquer um que seja.
  quero que a Mallu saiba dar seus passos sozinha, sem ficar esperando por aprovação ou buscando atender as expectativas que despejarem em cima dela.
  e quero que ela saiba que mesmo que nossos ideais não sejam os mesmos ou que eu não esteja sempre de acordo com a sua busca, estaremos juntas pelo mesmo caminho, com as mãos dadas e o coração em sintonia.


  nesse primeiro dia 12 de outubro com a minha pequena aqui comigo, o que desejo é que todas as crianças sejam respeitadas como seres únicos e subjetivos que são. que deixem de ser violadas, abusadas, exploradas, ignoradas. que nós, adultos guardando crianças há tanto emudecidas, saibamos vê-las com olhos de empatia, respeito, igualdade. que possamos dar valor à sua voz e ouvidos ao seu silêncio. que deixemos que sejam crianças, sem cobranças excessivas, sem impor limites que enclausurem. que os nossos pequenos e pequenas possam levar com leveza cada aprendizado dessa fase tão importante, que se sintam acolhidos e apoiados, que tenham certeza que ao lado delas há um adulto prezando por sua felicidade.



"Educação, para muita gente, significa tentar levar a criança a se parecer com o adulto típico. Para mim, significa tornar criadores, inventores, não conformistas."

- Jean Piaget

feliz dia das crianças ;)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

das mudanças que a maternidade me trouxe: eu escolhi respeitar

  ouvi muitas "piadinhas inofensivas" na minha infância. estaria mentindo se dissesse que elas não me afetaram e afetam até hoje.
  antes de dormir, eu sempre brincava com minha mãe, meu pai e meus irmãos de mímica. numa dessas vezes eu estava imitando não me lembro o que, e meu pai sempre dizia: "é um elefante!", e eu negava voltando a imitar. ele repetia: "é um elefante sim!" e caía na gargalhada. percebi que ele estava me chamando de gorda - como sempre - e saí correndo e chorando pro quarto. nunca mais brinquei de mímica.
  muitas vezes me falaram na "brincadeirinha" que eu era preguiçosa, que não fazia nada direito, que era lerda. na verdade até hoje ouço uns "comentários espirituosos" assim e, admito, ainda fico um pouco desconcertada.
  me acostumei a rir. fingia que não me importava, emendava outra "piadinha", contribuía com o menosprezo que me ofereciam, sempre sorrindo. doía, é claro, mas quem iria se importar? era só brincadeira.
  quando comecei a conviver com a família do Carlos percebi que aquele tipo de "descontração" não era exclusividade da minha família - sempre saíam "piadinhas" com alguma característica considerada defeito de um de nós dois. continuei rindo, acrescentando uma bobeirinha aqui, outra ali. ainda doía, mas e daí? estávamos acostumados.
  e eu comecei a pensar em como seria quando a Mallu estivesse aqui. qual "defeito" dela as pessoas destacariam e zombariam. fiquei aterrorizada só de imaginar que minha filha poderia se sentir insegura ou rejeitada como me senti algumas vezes com esse costume da minha família. e decidi que precisava de forças pra, em mais um aspecto da nossa vida, quebrar o ciclo.
  essa foi uma mudança muito difícil de conseguir colocar em prática, afinal fui habituada por uma vida inteira a rir de comentários pejorativos sobre pessoas que amo ou sobre mim mesma. há um bom tempo já não participava de "piadas" que fossem machistas, racistas, homofóbicas, transfóbicas ou opressoras de qualquer forma, mas ainda assim foi difícil vencer o desrespeito que me acostumei a praticar comigo mesma e com os que me cercam.
  eis que a Mallu chegou e o instinto de proteção (e de respeito) gritou mais alto. ouvi algumas piadinhas sobre ela que não gostei - a cor da pele, o cabelo, a mania que ela tem de chupar a língua, o "excesso" de colo, as orelhas que não são furadas - impressionante como tudo é motivo, não é? não ri, não participei, deixei claro que aquilo me incomodava e por vezes fui mais grosseira do que gostaria. tudo porque não quero que minha filha carregue essas marcas que aos poucos vão se transformando em traumas, inseguranças, medos, rejeição.
  então percebi que se eu fui capaz de fazer isso por ela, também seria capaz de fazer por mim e pelo meu companheiro. se ouço piadinhas me chamando de lerda, por exemplo, não rio e peço que a pessoa me explique com base em que ela acha isso de mim. se alguém faz piada do Carlos não compartilho dos risinhos e me imponho com a minha opinião sobre a pessoa maravilhosa que ele é. chega de aceitar esse peso que vem em forma de descontração. não, não é engraçado. não faz bem. chega.
  assim como não vou permitir jamais que alguém se sinta no direito de agredir minha filha fisicamente, também não permitirei que a agridam com rótulos pejorativos e achem graça em cima disso. claro que ela terá defeitos e dificuldades, mas vamos trabalhar juntas em cima disso com respeito e carinho, e não com deboche e desprezo.
  sou muito grata à meus pais por várias coisas na minha criação, mas da mesma forma sei que tenho muitos ciclos a quebrar para não repetir com a Mallu tantas coisas que me machucaram. é um trabalho difícil, diário, desgastante. mexe com o que temos escondido lá no fundo, com a suposta perfeição dos nossos pais, com a criança que ignoramos e calamos por tanto tempo. mas os frutos recompensam: aprender a se respeitar e respeitar o outro, a se amar e amar o outro - com defeitos, qualidades, seja do jeito que for. sorrir juntos em vez de rirem um do outro, andar lado a lado e não criar um abismo entre pessoas que se amam.
  faço isso pela Mallu sim, mas também por mim e pelo Carlos. e sei que é um passo importante pra nós enquanto crianças-esquecidas e principalmente enquanto família.
  e vocês, que ciclos precisam romper?