sábado, 22 de março de 2014

relato de puerpério: doloroso, lindo, vivo e excitante


  lendo uma discussão de um dos grupos sobre parto que participo, me deparei com esse relato da Jobis Guerra (uma mulher que admiro muito, ainda que só a conheça pelas palavras nos grupos em comum). e dessa vez fui tocada tão profundamente que senti que precisava dividir com outras mulheres. pedi autorização e prontamente a Jobis autorizou, feliz por servir, como ela mesma disse.
  divido com vocês uma experiência que não foi escrita por mim, mas também foi minha. e poderia apostar que sua também, não?

Um belo dia, eu não me reconheci. Eu não sabia exatamente o que tinha mudado, mas eu não era eu. Não tive consciência. Não vi que estava mudando. Um belo dia, eu não cabia mais nas minhas roupas... Nos meus conceitos, nas minhas posturas, nos meus desejos, nos meus projetos. Fiquei chocada. Abri meu guarda roupa e vi que nada daquilo me pertencia mais. Abri meu porta jóia e vi que nada daquilo fazia mais eco em mim. Quem eu era? Do que eu gostava? Quais eram as minhas marcas? Quais eram os meus cheiros , as minhas músicas, os meus livros, os meus discos? Qual era a minha voz? Foi assustador. Eu estava vivendo a vida de outra pessoa. O que era aquilo, tão diferente de mim, tão intensamente eu, e tão diferente de quem eu era e de quem eu pensei que me transformaria? Nem minha casa estava como eu queria! Parecia que eu nem morava ali! Parecia que aquilo tinha sido decorado por uma estranha!
E aí eu me assumi, me enterrei e renasci. Não foi fácil. Mas se alguém ler o que eu escrevia antes e depois de 2007, talvez se espante com a diferença. Os de perto estranharam. Perdi amigos antigos. Encontrei amigos novos. Revitalizei alguns laços.
Hoje eu sei que sou coisas que nunca imaginei. Sei que, quando eu inflei, inflei, até expelir um grão de humanidade, perdi algo junto com a placenta... E ganhei algo junto com os seios fartos. Perdi algo com as noites insones. Algo da minha essência morreu junto com a água fria que era quente para baixar as febres. E ganhei algo quando os via adormecer nos meus braços. Quem eu sou? Quem eu era? Perdi toda a segurança dos meus 20 anos. Perdi quase todos os meus ideais de festim. Perdi a leveza de quem não tem a vida de outra vida nas mãos e nas costas. Perdi a ingenuidade de quem acredita que um colar de pérolas a fará realmente mais bonita e ganhei... A segurança de uma mulher. A sabedoria de quem sabe que pode aprender, de quem sabe que pode se superar, de quem sabe que tem um lugar, de quem sabe que não precisa mais se afirmar, e provar as coisas para os outros, e convencer para ser respeitada. Ganhei a glória de quem se respeita, porque achou seu lugar. A leveza de quem está mais perto de entender a ingenuidade dos outros. Ganhei um respeito pelas diferenças que não tinha, quando pensava que sabia muito mais do que ignorava no mundo. Ganhei a suavidade e a delicadeza de quem já sabe onde vai. Ganhei a ternura de quem não tem medo do tempo, porque sabe que o bom e o belo, o assombro e o torvelinho podem vir a qualquer momento. Ganhei intimidade com a vida, por ter conhecido a presença da morte de tantas maneiras.
Quem eu era, não fui nunca mais. A menina que amava rosa, hoje prefere azul ou cinza. Que adorava perfumes mais chamativos, hoje prefere os mais discretos e gentis. O cabelo grande continua, se possível, abaixo da cintura, por favor... E ainda gosto de enfeitá-lo com um prendedor prateado, em dias de festa. Mas não preciso mais do meu prendedor prateado para saber que é dia de festa. Estou livre de muitas coisas, e presa há milhares de outras. Tudo mudou, mas, em algum momento, eu senti que não houve exatamente morte. Não foi uma impostora que tomou meu lugar, minhas roupas, meus livros, minha casa, meu marido. Foi apenas a essência destilada de quem eu sempre fui, mas era medrosa demais para assumir. Eu tinha vergonha de bancar minha essência fêmea e me contentava com distrações; eu tinha receio do que seria de minha vida social se os outros vissem o tamanho do meu idealismo, e me contentava com meias palavras. Agora, não. Toda minha força, ternura, delicadeza, intensidade e amor estão expostos, a mostra, e foi isso que a maternidade fez por mim. Não se pode gritar enquanto pare ou se tem nascido uma cria e usar as mesmas máscaras depois. Não se pode cuidar tão intensamente de outro ser humano e ter as mesmas reservas com os outros seres da criação depois. Isso te revela na essência, te despe mais que qualquer encontro sexual e mostra o belo e o grotesco que existe em você... E o que fica é a realidade, você, o mundo que segue como sempre seguiu ao seu redor e, de algum modo, você está no centro ou na periferia dele, sozinha e nua, com uma cria nos braços. É assustador, é doloroso, é desconcertante... Mas é lindo... E, perdoe... é também vivo e... excitante demais.
Jobis Guerra Joyce

Um comentário:

FABI CARVALHO disse...

Lindo e emocionante, precisando de pessoas inspiradoras...